O tema Indústria 4.0 vem sendo cada vez mais usado no mercado de soluções para as empresas em geral, na academia e em políticas governamentais.
Trabalho há quase 40 anos na área da automação da manufatura, com pesquisas e em cooperação com empresas. Atuo no nível de chão de fábrica, de planejamento e gestão de cadeias de suprimento, e de processos e integração de sistemas. Vivenciei neste tempo praticamente todos os ciclos de evolução da TI e automação no Brasil e no mundo, por isso resolvi escrever algumas coisas sobre o que vem me inquietando há um tempo:
Afinal, essa “coisa” de Indústria 4.0 é de fato algo que realmente muda radicalmente uma empresa ou é meramente um jogo de marketing dos grandes players do mercado? Se muda, o que muda de concreto? “Isso” de Indústria 4.0 não seria apenas um nome mais “chique”, mais moderno, para o “velho e bom” conceito CIM ? Seria a Indústria 4.0 a mesma coisa que a 4ª revolução industrial? E onde entra a tal da “Transformação Digital” nisso tudo?
Esta inquietação ganhou mais corpo ao perceber que a imensa maioria das publicações sobre o tema é ou genérica demais ou foca apenas em manufatura e/ou em chão de fábrica. Ainda lidam com o assunto como se todas as empresas fossem do mesmo tamanho e tivessem a mesma maturidade, e como se tudo se resumisse à aplicação de tecnologias e ad tal da “inteligência artificial”.
Este artigo sintetiza as minhas últimas leituras na área, de literalmente dezenas de artigos científicos e livros, blogs, sites de empresas e de institutos de pesquisas de mercado, relatórios técnicos de instituições governamentais e não governamentais, entre outros. De forma alguma deve ser visto como algo perfeitamente completo ou não sujeito a alguma incorreção pontual. O objetivo principal deste artigo é de tentar levar as pessoas que estão tendo que lidar com essa questão de Indústria 4.0 a um melhor entendimento do que ela realmente se trata e, quem sabe, as ajudar a ter uma visão mais alargada sobre suas implicações.
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Para começar, já adianto: sim, o modelo de Indústria 4.0 muda profundamente uma empresa! Aliás, muda talvez até mesmo o conceito clássico em si do que é uma empresa, consolidado inicialmente no Ocidente no princípio do século XIX. E muda tanto que, de fato, é bastante condizente associar o conceito de Indústria 4.0 com o de uma “revolução” industrial/empresarial.
Para facilitar o entendimento, organizei o texto em oito partes:
Conceituais iniciais;
Objetivos da Indústria 4.0 e da Transformação Digital;
Indústria 4.0 não é só Manufatura e não é só chão de fábrica;
Principais tecnologias de sustentação & alavancagem da Indústria 4.0;
As profundas mudanças numa organização com a Indústria 4.0;
A importância de um “roadmap”;
5 perguntas de “1 milhão de dólares”;
Pontuações Finais.
1. Conceituais iniciais
A 4ª. Revolução Industrial tem a ver com a convergência de inúmeras tecnologias, Internet, automação, robotização em larga escala e digitalização plena de informações para se resolver problemas ou se gerar grandes facilidades aos usuários e empresas nas suas mais variadas questões em suas rotinas. No contexto mais empresarial, isso abrange a customização em massa de produtos e serviços, uma altíssima flexibilidade de se lidar e gerenciar as diversas cadeias de valor envolvidas, e a agilidade organizacional para dar suporte a todo esse modelo.
As mudanças provocadas por esse cenário são sistêmicas, de paradigmas tecnológicos, sociais, econômicos, éticos, legais, de trabalho, entre outros, em praticamente todas as áreas da sociedade, como a da manufatura, da saúde e da farmacologia, das ciências humanas, da computação, das finanças, do clima, da alimentação, da ecologia, da energia, dos materiais, das máquinas, dos transportes e mobilidade, das cidades inteligentes e da política.
Na perspectiva industrial, da “manufatura”, de “produção de bens, serviços e geração de valor”, a Indústria 4.0 (também chamada de Manufatura Avançada ou Manufatura Inteligente / Smart) é um modelo de operação empresarial desenhado para fazer frente às mudanças e necessidades da 4ª Revolução Industrial e, ao mesmo tempo, tirar proveito de inúmeras tecnologias (de variadas áreas) e da convergência ou combinação delas para solução de diversos problemas.
Portanto, Indústria 4.0, apesar de estreitamente relacionada, não é a mesma coisa ou sinônimo de 4ª. Revolução Industrial.
Toda a visão por trás do modelo Indústria 4.0 tem como pedra angular a informação digital, sendo ela o principal elo de integração da empresa. Na verdade, esta visão, numa perspectiva menos abrangente (mas compatível com a época), vem já desde 1973, quando o conceito de CIM (Computer Integrated Manufacturing) foi inicialmente cunhado nos Estados Unidos. Uma década depois, em 1984, com a evolução do que se tinha como estado da arte em automação industrial, surgiam os sistemas CAD/CAM, dando origem a definições mais sólidas sobre automação, que por sua vez ajudaram a pavimentar a ideia de digitalização plena de uma empresa em uma época em que, no exterior, a microinformática e sistemas distribuídos ganhavam força enquanto o Brasil estava ainda preso à lei de reserva de mercado de informática e aos mainframes.
Por outro lado, pode-se dizer que os objetivos desejados com o CIM não são muito diferentes dos da Indústria 4.0: fazer melhor, com maior retorno, com menos recursos, etc. Essencialmente, e de forma muito geral, “apenas” alteraram-se:
a complexidade dos negócios: que aumentou muito (globalização, horizontalização das empresas, regulamentações variadas, etc.) e assim criou dificuldades adicionais à integração dos setores / processos para suportarem mais dinâmicos e modernos modelos de negócio com um crescente envolvimento do cliente, usando novos métodos ou filosofias de gestão (em vários níveis);
as novas TICs e tecnologias: melhores, mas muitas bem mais complexas – e que, por si só, não sanam os problemas organizacionais de base para uma integração mais fluída e em maior escala.
os avançados equipamentos industriais: máquinas mais “inteligentes”, reconfiguráveis, sistemas embarcados, etc.
o ambiente computacional: bem mais complexo, largamente distribuído e heterogêneo, redes industriais / IoT, sensores, conexão com Internet e nuvem, dispositivos móveis, várias necessidades de segurança, etc.
2. Objetivos da Indústria 4.0 e da Transformação Digital
A figura abaixo retrata os três objetivos básicos da Indústria 4.0: a utilização de novos modelos de negócios numa economia orientada a serviços; o desenvolvimento acelerado e customizado de novos produtos e serviços; e a melhoria contínua de desempenho operacional. Porém, na Indústria 4.0 tais objetivos acabam por serem condicionados pela consideração de pelo menos quatro grandes elementos ortogonais: a adoção de certas novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC); a Internet e segurança computacional; as máquinas (cada vez mais) inteligentes e uma (crescente) simbiose com operadores e usuários em geral; e a crescente necessidade de se considerar princípios de sustentabilidade e ecológicos.
A Transformação Digital
É o processo de alinhar uma organização para se preparar, atingir e trabalhar dentro desses objetivos, num ciclo virtuoso de evolução contínua. De transformar toda uma organização - e as cadeias de valor envolvidas - em algo que a melhore, que gere valor ao negócio, através do massivo uso de tecnologias, sobremaneira as de TIC.
O Ser Humano é o elemento central dessa transformação. A automação e a Inteligência Artificial (IA) não têm por objetivo transformar um trabalhador em um ser que não precisa mais pensar, mas sim em fazê-lo ter mais tempo qualitativo e melhores condições para mais eficazes análises e tomadas de decisão com base na computação de bilhões de dados, milhares de cenários e vastos conhecimentos.
3. Indústria 4.0 não é só Manufatura e não é só chão de fábrica
Apesar da maioria dos trabalhos apresentados na literatura e implementados na prática serem voltados para a manufatura e, dentro disto, principalmente para o setor metal-mecânico, a visão “Indústria 4.0” serve para qualquer tipo de empresa que “produza algo”, seja de processos discretos, seja de contínuos. Portanto, pode envolver inúmeros outros setores, como o petrolífero, cerâmico, agrícola, aviário, siderúrgico, calçadista, madeireiro, têxtil, de transporte, entre muitos outros.
Além disso, é extremamente comum as publicações sobre Indústria 4.0 falarem apenas de chão de fábrica (círculo na figura abaixo), como se ela apenas afetasse esse nível de uma empresa industrial, quando na verdade afeta toda empresa.
Além disso, o modelo Indústria 4.0 praticamente destrói um dos mais fortes paradigmas de gestão e controle: a centralização de decisões e a comunicação fundamentalmente hierárquica. Se tomarmos como base a pirâmide acima usada na figura, a “famosa” pirâmide da automação do modelo ISA-95, a comunicação entre os vários níveis (e processos) de uma indústria são desenhados para interagirem verticalmente e pouco horizontalmente. Isso coíbe ações e adaptações dos vários setores, pessoas e processos de uma indústria para atender aos requisitos de agilidade da Indústria 4.0.
A indústria 4.0 demanda grande flexibilidade e tomadas de decisão com mais autonomia em todos os níveis para agir de forma smart. O ter algo hospedado na nuvem ou usar um sistema baseado em SaaS (Software-as-as-Service), como é a “moda” atual, não é de forma alguma sinônimo de Indústria 4.0.
Embora sistemas clássicos de automação, como os MES (Manufacturing Execution Systems) e ERPs (Enterprise Resources Planning) continuem a ser usados, as suas concepções se darão cada vez baseadas no estilo de arquiteturas orientadas a serviços (SOA – Service Oriented Architecture), integrados a sistemas de gerenciamento de processos de negócios (BPM – Business Process Management) para um rápido (re)desenho e implantação dos processos dentro de um modelo de integração flexível, fortemente desacoplado, ao invés de serem rigidamente integrados via clássicas APIs. As funcionalidades dos mais variados sistemas terão a flexibilidade de serem dinamicamente plugadas a partir de vastos ecossistemas de provedores de software, implementados usando padrões abertos, rodando na nuvem, acessados sob demanda e pagos por uso, tudo isso suportado por plataformas & barramentos plug & play.
Deste modo, os sistemas (i.e. os serviços de software) passam a ser ativos estratégicos da empresa, pois boa parte do valor a ser entregue será cada vez mais gerado por ou através deles.
4. Principais tecnologias de sustentação & alavancagem da Indústria 4.0
Há um conjunto de tecnologias que são tidas como os principais instrumentos para se atingir os objetivos da Indústria 4.0. No todo, visam garantir “digitalização e inteligência massivas”:
Inteligência Artificial e Sistemas multiagente.
Sistemas Ciberfísicos (Cyber-physical Systems – CPS), incluindo robótica colaborativa.
Internet das Coisas (IoT) e Internet Industrial das Coisas (IIoT).
Redes de comunicação industriais e de sensores sem fio, instrumentação.
Sistemas Embarcados e de Tempo Real.
Sistemas Computacionais Orientados a Serviços e baseados em Nuvem.
Manufatura Aditiva.
Porém, não é suficiente ter tais tecnologias sem que elas garantam ou não suportem aspectos como:
Integração e interoperabilidade de sistemas e de informação, incluindo gestão de conhecimento.
Modularidade, virtualização, digitalização e simulação.
Informação em tempo-real.
Computação orientada a serviços.
Descentralização, autonomia e inteligência de sistemas, de máquinas e de arquiteturas.
Controle de processos, medição e avaliação de desempenho.
Sejam quais elas forem, o que deve ficar claro é que as tecnologias são “meras” habilitadoras, facilitadoras, os meios para a Transformação Digital e não o seu objetivo final.
Além disso, a implantação de cada tecnologia tem um custo (sob vários pontos de vista, mas sobremaneira financeiro), e isso tem que de alguma forma se pagar (RODI – Return of Digital Invesment).
Oportunidades de Negócios
Estamos apenas no início dessa nova Revolução ... mas mudando cada vez mais rápido e em ciclos cada vez menores de duração. Advoga-se que a “vida útil” do modelo Indústria 4.0 será de cerca de apenas 20 anos, tamanha a velocidade das mudanças, e a ser sucedido por “algo” que poderíamos chamar de “5.0”. Ao mesmo tempo, ainda convivemos com a realidade da “3ª Revolução Industrial”. Nessa transição há naturais “choques” de mudanças, típicos dos períodos de insegurança (da “saída” do modelo antigo) e de incerteza (da “entrada” no modelo novo).
Por outro lado, isso gera inúmeras oportunidades de negócios!
“Casos de Uso” da Indústria 4.0
Nesta perspectiva de negócios, eu costumo dizer que temos dois “casos de uso” na Indústria 4.0. No primeiro, que eu chamo de “clássico” ou “bottom-up”, uma organização limita seus negócios ao que consegue “extrair” do seu chão de fábrica quando este utiliza aquelas tecnologias (acima listadas), que se convencionou chamar de voltadas para a Indústria 4.0. No segundo caso de uso, que eu chamo de “avançado” ou “top-down”, uma organização utiliza aquelas tecnologias para expandir sua visão de negócios. Na verdade, os dois casos de uso são importantes e complementares numa empresa.
Neste contexto, há três grandes categorias: de “clientes”, de “soluções” e de Indústria 4.0. O consumidor final, principalmente na forma de serviços, demanda por soluções de software (majoritariamente via Internet) e tradicionais, de não-software. Porém, há que se considerar que existe uma nova geração de consumidores, de jovens e também de adultos, que passam a estar cada vez mais atentos aos valores, ações sócio-ecológicas e propósitos das empresas e que geram novos requisitos – tangíveis e intangíveis. A indústria/empresa em si, na forma se serviços e "produtos" (sooftware, hardware, equipamentos, etc). Existe, também, uma nova geração de empresários surgindo, com novas visões de modelos de negócios, sustentabilidade, qualidade, entre outros, e que geram novos requisitos aos provedores de soluções. E os provedores de soluções, na sua grande maioria micro e pequenas empresas emergentes de ecossistemas de inovação, que necessitam igualmente de soluções, serviços e parcerias de negócios. Porém, há que se considerar que existe aqui também uma nova geração de empreendedores e startups que têm posto cada vez à prova modelos tradicionais e, assim, geram também novos requisitos.
Estas categorias de clientes fazem parte de um todo muito maior, que devem trabalhar como uma Rede Colaborativa de Organizações, imersa num ecossistema geral de negócios e de desenvolvimento socioeconômico. Isso cria um “framework” dentro do qual o modelo de Indústria 4.0 cada vez mais se desenvolverá. Este framework tem três grandes pilares: o paradigma de economia orientada a serviços, as plataformas digitais, e os sistemas de inovação.
A economia orientada a serviços atua como um recente modelo socioeconômico de trabalho, tendo como algumas das suas características: múltiplas e dinâmicas cadeias de valor (Organizações Virtuais); todo bem, transação, informação e recurso (físico e humano) é um serviço a ser provido, integrado a outros, ofertado, regido por diferentes SLAs e sob diferentes modelos de negócios; networkability; desintermediação; um grande ecossistema global composto por centenas de ecossistemas (“constelação”) independentes e geograficamente dispersos.
As plataformas digitais funcionam como uma grande Infraestrutura de Comunicações de suporte a Negócios, Colaboração e Cocriação, tendo como algumas das suas características: coexistência de múltiplos modelos de negócios; comunicação segura, interoperável e com governança; oferta de produtos e serviços; plugagem e desplugagem fluída de parceiros de acordo com as cadeias de valor envolvidas; realização de negócios, colaboração e inovação; múltiplos canais de interação entre os diversos atores; plugagem e desplugagem sob demanda de serviços de software e sistemas SaaS.
Os sistemas de inovação atuam como a base de um modelo de desenvolvimento contínuo de soluções, tendo como algumas das suas características: a coexistência de vários modelos de inovação, de fechada a aberta, de individual a em rede, de linear e funil a não lineares. Na Indústria 4.0 o modelo extrapola o clássico da tríplice hélice, envolvendo várias categorias de atores: Universidades, Centros de P&D&I, Parques, Habitats, etc.; Indústria/Empresas; Governo, em suas várias esferas; Sociedade civil, ONGs, etc.; Comunidades de prática; Entidades de Financiamento (bancos, venture capitals, etc.); Entidades de Serviços de Inovação (brokers, mentores, aceleradoras, advogados, incubadoras, etc.).
5. As profundas mudanças numa organização com a Indústria 4.0
Como comentado anteriormente, a implantação do modelo de Indústria 4.0 impacta uma empresa total e profundamente. Visando facilitar o entendimento desses impactos, organizei-os em seis dimensões.
DIMENSÕES DE MUDANÇAS
No Negócio, Estratégia e Modelos de Negócio
No Modelo de Gestão
Nas Máquinas & Chão de Fábrica
Na Computação
Nos Colaboradores
Nas Tecnologias
As mudanças do cenário de Indústria 3.0 para o de Indústria 4.0 foram colocadas na forma de um quadro comparativo para cada dimensão.
Ao se observar os quadros é importante enfatizar que não significa que certas realidades da Indústria 3.0 (coluna da esquerda) não são mais importantes de serem suportadas, mas sim que são complementadas, fortemente alteradas ou impactadas no modelo de Indústria 4.0 (coluna da direita). Por questões de espaço, não é possível detalhar aqui cada linha de cada quadro de cada dimensão.
Ainda, é igualmente importante enfatizar que, em termos gerais, cada linha desses quadros representa aspectos de transformação digital. Como tal, são foco de desenvolvimento de soluções, de negócios, de novas metodologias, métodos, técnicas, etc.
Mudanças no Negócio, Estratégia e Modelos de Negócio
Mudanças no Modelo de Gestão
Mudanças nas Máquinas & Chão de Fábrica
Mudanças na Computação
Mudanças nos Colaboradores
Mudanças nas Tecnologias
Portanto, como se pode perceber, Indústria 4.0 não é sinônimo de comprar modernos equipamentos industriais, passar a usar impressora 3D, ou passar a usar uma ferramenta de BI (Business Intelligence), por exemplo. Trata-se de um novo modelo de pensamento sobre como ser e operar uma empresa na era da 4ª Revolução Industrial.
6. A importância de um “roadmap” e adequada velocidade de mudança
Dadas as enormes mudanças que representam a transformação de uma empresa para funcionar sob o modelo de Indústria 4.0, há vários riscos associados, incluindo custos. Portanto, para os minimizar, é importante se ter um “guia”, um “passo a passo”, de como migrar do estado atual para o de Indústria 4.0. Para isso que servem basicamente os chamados roadmaps.
Existem várias propostas de roadmaps na literatura. Todos que eu conheço são bastante genéricos. Dentre eles, um que eu gosto é do Pessl1, mostrado na figura abaixo.
O problema de serem genéricos é que requerem especialistas para “traduzir” o modelo de roadmap em ações concretas, considerando a realidade e objetivos de cada empresa em específico, num rumo gradual, coerente, consistente e gerenciável. Afinal, nenhum roadmap desses de “referência” dá por si só instrumentos concretos para ajudar a empresa a definir coisas cruciais, tais como:
O que mudar exatamente? Como mudar? Em qual ritmo mudar? Por onde exatamente começar?
Quais são os impactos, custos e riscos de cada mudança?
Quais são os tipos de profissionais efetivamente necessários para operacionalizar as mudanças?
Qual deve ser a mais adequada arquitetura e modelo global de integração de todos os sistemas a serem usados?
Como considerar as completamente diferentes realidades de PMEs e grandes empresas?
Quais tecnologias adotar dado que mesmo as “clássicas” de Indústria 4.0 têm diferentes níveis de maturidade, impactando nas suas adoções, custos, riscos e ritmo de adoção?
Uma estratégia usualmente adotada para ajudar na definição de um roadmap para uma dada empresa é a de modelos de maturidade (maturity models). Entretanto, da mesma forma que os modelos de roadmaps, os apresentados na literatura são bastante genéricos. Por exemplo, tomemos um dos mais conhecidos atualmente, da ACATECH2, que dá uma noção de “estados de maturidade” que devem ser implementados gradualmente até se chegar ao estado máximo, de “adaptabilidade” constante. O Senai tem no seu site (https://senai40.com.br/) uma versão traduzida do modelo da ACATECH e disponibiliza o serviço de ajudar as empresas a saberem o seu nível de maturidade.
Visões mais maduras, eu diria, passam por enxergar as etapas de um modelo de maturidade não necessariamente como lineares e toda-de-uma-vez. Ou seja, consoante aos legados da empresa, sua maturidade em certos processos, etc., ela pode evoluir (em termos de melhor se preparar para a transformação digital num cenário de Indústria 4.0) sem ter que se “destruir” e ao mesmo tempo usando de modernas visões e TIs para pular algumas etapas.
A despeito desses modelos, há alguns estudos que vêm tentando mapear o nível de maturidade 4.0 das indústrias no Brasil, principalmente do setor de manufatura, usando variados modelos e critérios de avaliação3. Em termos gerais, e tomando com base o modelo da ACATECH, observa-se que a grande maioria das empresas está no nível 2 e enfrentando grandes dificuldades para chegar ao nível 3 ... que são os dois níveis mais “elementares” para se atingir os objetivos da Indústria 4.0. Em outras palavras, a grande maioria das empresas não têm seus sistemas muito integrados para mais rápidas e melhores tomadas de decisão e não conseguem obter dados confiáveis e em tempo real dos seus chãos de fábrica.
Uma outra abordagem comum de ser ver a maturidade é por nível de processos ou por aspectos/dimensões de uma empresa. Embora igualmente bastante genéricos e havendo vários na literatura, um que eu também gosto é o do Schumacher4, sumarizado abaixo.
Alguns comentários sobre as empresas e profissionais provedores de “soluções” para Indústria 4.0
Como se pode perceber por aqueles quadros acima e pelas outras questões pontuadas neste artigo, são tantas as mudanças que uma empresa deve sofrer que fico “preocupado” quando vejo até mesmo grandes empresas de consultoria dizerem que “temos a solução para os seus problemas e sabemos como lhe guiar rumo à Indústria 4.0”. Na prática, ninguém consegue ter ferramentas, metodologias, etc., etc., para todos os aspectos envolvidos no processo de transformação digital num cenário de Indústria 4.0. Ainda, quando algumas empresas de software e hardware dizem que “aquilo é feito para Indústria 4.0”, quando, em inúmeros casos, os produtos “4.0” são uma mera nova “embalagem” para o que elas já tinham para o cenário “3.0”. Via de regra estão disfarçadas por sopas de letrinhas que poucos empresários entendem ou conseguem ter uma visão crítica da real necessidade daquilo para sua empresa e quais ganhos concretos e mensuráveis aquilo trará.
Com certeza essas consultorias podem sim ajudar, e muito! Mas, acho eu, principalmente na elaboração de roadmap, pelo menos o básico, naturalmente associado ao planejamento estratégico da empresa. Ou seja, antes de mais nada, na Estratégia! O problema é que uma quantidade significativa de PMEs não tem sequer a prática de fazer planejamento estratégico, e então se percebe que o “buraco é muito mais embaixo”. Portanto, na minha modesta opinião e com base também no que tenho lido em inúmeros reports5, só depois de um roadmap é que faz sentido se pensar em “compras” de coisas. Não adianta a empresa se endividar comprando uma “Ferrari” se o dono não sabe bem o que na verdade quer com ela, não sabe como tirar proveito de toda a capacidade dela, não sabe onde quer chegar com ela, e se não tem uma adequada “estrada” e meios para andar com ela (infraestrutura de TI, pessoal capacitado, maturidade organizacional, recursos financeiros, etc.).
Por outro lado, o modelo Indústria 4.0 é muito recente, em muitas facetas representando ainda um “como será no futuro”. Quero dizer com isso que muitas teorias, modelos, etc., estão ainda por vir, não existem prontamente ainda, ou não foram ainda exaustivamente avaliados na prática. Daí que, na minha opinião, as próprias empresas de consultorias acabam por usar ou simplesmente adaptar teorias “3.0” para o mundo “4.0”, pois elas mesmas estão também aprendendo com o processo. Não há problema algum em “reutilizar” conhecimento! O problema é que o modelo 4.0, para muitos aspectos, demanda uma visão completamente nova de como fazer frente a certas questões, não sendo assim suficiente apenas dar uma “adaptada” no modelo antigo.
Finalmente, vejo muitos provedores de soluções e consultorias proporem softwares novos, mas com uma visão de integração de sistemas antiquada. Vejam que hoje o “estado da arte do estado da prática” é pegar dados do chão de fábrica, jogar num banco de dados local ou na nuvem, e fazer um sistema de BI (Business Intelligence) trabalhar em cima disso. Tomando isso como mero exemplo, mas o fazem com que visão de arquitetura escalável, interoperável e flexível / adaptável aos modelos de processos de negócio? Com que nível de acoplamento e lock-in? Com que visão global de garantia de SLAs, segurança e governança? Com que visão de uso de padrões abertos? Com que modelo de processos e semântica? E por aí vai. Pouco tenho visto disso no grosso das soluções “modernas” do mercado.
7. Cinco perguntas de “1 milhão de dólares”
A despeito do significado de Indústria 4.0, considero que existem 5 questões que são determinantes para que a implantação desse modelo numa empresa atinja os resultados (pelo menor perto dos) esperados. Elas têm a ver com o saber o que se quer atingir, com que tipo de produto e modelo de negócios, com o como mudar, com qual capacitação, e com que modelo de permanente evolução.
O que a empresa quer passar a ser com a introdução de conceitos e tecnologias associadas à Indústria 4.0 ? O que medir para verificar o sucesso ?
Quais são as mais adequadas soluções (produtos, serviços, etc.) e respectivos modelos de negócio que o mercado precisa e que sua empresa é capaz de atender para esse cenário geral de Indústria 4.0, mas que ainda se mescla com uma realidade “3.0” e com empresas de variados tamanhos e maturidades ?
Considerar que esse cenário de negócios não é estanque. Essas mesmas novas soluções vão pavimentar a criação de novos e ainda desconhecidos cenários de “produção”, fazendo com que novas e diferentes soluções tenham que ser desenvolvidas, num ciclo ininterrupto e cada vez mais curto.Qual será a estratégia e modelo geral de mudança da empresa para se introduzir as mudanças adequadas, no tempo adequado, com recursos adequados, de forma que o processo seja sustentável, não ponha em risco a própria empresa, mas ao mesmo tempo possa gradualmente gerar resultados de melhoria e considerar o próprio processo de aprendizagem da empresa com as mudanças?
Quais são as mais adequadas capacitações para as pessoas (incluindo o setor de RH) das empresas e das suas parcerias de negócio nesse cenário para implantar e sustentar o processo de transformação digital? Qual será a estratégia de gestão de mudanças a ser adotada pela empresa para mitigar resistências das pessoas às grandes mudanças impostas pelo modelo Indústria 4.0?
Quais são os mais sustentáveis modelos de P&D&I (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação) para as empresas adotarem ... e sobreviverem nesse cenário ?
8. Pontuações Finais
Cada item de cada categoria de cada quadro pode ser visto como um “problema” a ser enfrentado ou, sob um outro ponto de vista, como um aspecto de potencial vantagem competitiva, de agregação de valor ao negócio. Ou seja, de potencial de mercado para oferta de “soluções” (produtos, serviços, etc.).
Aquela categorização é apenas “teórica”. Na prática, embora em diferentes níveis de intensidade e inter-relacionamento, tudo está interligado.
Para cada um daqueles aspectos já há algumas técnicas, ferramentas, modelos, metodologias ou melhores práticas, mas com diferentes graus de consolidação e maturidade.
Ao se comprar um produto, software, etc., rotulado como voltado para Indústria 4.0, esqueça o rótulo. Se atenha ao fato de que ele deve lhe ajudar a resolver ou minimizar um problema concreto seu e, ao fazê-lo, deve lhe gerar valor e vantagem competitiva.
Inovações (de produto, de processo, de serviços e de modelos de negócios, por exemplo) podem ocorrem em vários níveis, em diferentes categorias e sobre diferentes itens daqueles quadros, inclusive com diferentes modelos de inovação dependendo do caso e da empresa.
A empresa deve se preparar para mudar. A principal mudança a ocorrer é de “mentalidade” (mindset), de que embora “hoje” uma empresa (ainda) sobreviva com uma realidade 3.0, “amanhã” ela acordará já com a 4.0 a pleno à sua porta ... E possivelmente será tarde demais. Muda a forma de pensar sobre o que é uma empresa; de como operá-la e gerenciá-la; na forma e tecnologias para produzir bens e serviços; e na forma de os vender, disponibilizar, oferecer.
A questão é que essa mudança leva tempo, é profunda, é custosa, tem riscos, e é um processo em si de aprendizagem organizacional, com erros e acertos.
Não existem “salvadores da pátria” no mercado de Indústria 4.0. Estamos todos aprendendo e “tateando” nesse novo terreno. Um dos problemas associados a isso é que possivelmente a construção da solução mais adequada para cada empresa precise envolver a análise, seleção e integração de produtos e serviços de vários provedores, o que demanda uma mais complexa arquitetura de sistemas e processos, gestão de projetos e de tecnologia, assim como mais especializados recursos humanos.
Importância de se traçar um “roadmap”, um “plano diretor”, que auxilie a empresa na Transformação Digital, i.e. a ela passar de um estado (Indústria 3.0) para o outro (Indústria 4.0) de forma sustentável, considerando seu grau de maturidade tecnológica, de TI, organizacional, de recursos humanos / qualificação, cultural, de processos (em todos os níveis) e financeira bem como o porte e o tipo de mercado de cada empresa.
O Departamento de Automação e Sistemas da UFSC trabalha em estreita parceria num modelo de mão dupla em termos de P&D&I com a VM - Vertical Manufatura (https://manufatura.acate.com.br/), um grupo de mais de 25 empresas provedoras de soluções para manufatura em Indústria 4.0.
A VM é um dos 13 “clusters” da ACATE (www.acate.com.br), a maior entidade de empresas de base tecnológica e de automação industrial de SC e um dos principais atores do sistema catarinense de inovação.
1 E. Pessl, S. Sorko, B. Mayer, Roadmap Industry 4.0 – Implementation Guideline for Enterprises, International Journal of Science, Technology and Society, Vol 5, Issue 6, November 2017, Pages: 193-202
2 https://www.acatech.de/wp-content/uploads/2018/03/acatech_STUDIE_Maturity_Index_eng_WEB.pdf
3 Por exemplo, o estudo de Storolli 2018 sobre o setor de autopeças, disponível em http://doi.editoracubo.com.br/10.4322/PODes.2018.012
4 A. Schumacher, S. Erol e W. Sihn, 2016. A Critical Review of Smart Manufacturing Industry 40 Maturity Models – Implications for Small and Medium-sized Enterprises SMEs.
5 Por exemplo, em Kane et al., “Strategy, not Technology Drives Digital Transformation: Becoming a digital mature enterprise”. MIT Sloan Management Review. Deloitte University Press. Summer, pp.3-24, 2015.
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