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"O Brasil tem potencial para ser o dínamo do desenvolvimento na América Latina", diz Carlota Pérez

Para a economista e teórica, o país precisa estabelecer metas e construir um consenso público-privado para aproveitar plenamente as oportunidades e tecnologias

Por: Agência de Notícias da Indústria      06/11/2024 

Em um mundo em constante mudança, as teorias de Carlota Pérez se destacam ao abordar a relação entre inovação tecnológica e desenvolvimento econômico. A especialista britânico-venezuelana em impacto das tecnologias é reconhecida internacionalmente por sua teoria das revoluções tecnológicas e como elas abrem "janelas de oportunidade" específicas para o desenvolvimento.

Ao longo de carreira, Pérez lecionou em várias instituições, incluindo a London School of Economics, a University of Cambridge e a University College London. Ela defende a necessidade de políticas industriais proativas, especialmente na América Latina.

“A oportunidade é muito mais ampla, pois inclui a descarbonização de toda a indústria de materiais e da agricultura, além da saúde e outros setores. É um dos conjuntos de oportunidades mais amplos e desafiadores que o Sul Global, e particularmente o Brasil, já enfrentou”, estima.

Em entrevista à Agência de Notícias da Indústria, Pérez analisa criticamente como os países sul-americanos podem aproveitar a oportunidade de usar a tecnologia para promover o crescimento e a inclusão.

Confira a entrevista

Dado o novo contexto geopolítico da política industrial, quais são as oportunidades para a América Latina?

As tensões entre o Ocidente e a China, juntamente com a emergência climática, abriram uma janela tripla de oportunidades para a América Latina. De fato, essa janela tripla está se abrindo para todo o Sul Global. Uma oportunidade é o processo de "reglobalização" por meio do "friendshoring" [realocação da produção para países “amigos”] por razões estratégicas. A segunda é a transição verde, e a terceira, que existe há décadas, é o acesso à inovação com tecnologia da informação, que agora pode se conectar com as outras duas oportunidades, ampliando-as. Das três, talvez a mais importante para toda a América Latina, mas particularmente para o Brasil, está relacionada aos recursos naturais. A transição verde requer enormes quantidades de materiais. Se pensarmos em substituir quase dois bilhões de carros em todo o mundo por veículos elétricos e construir centenas de milhares de torres de turbinas eólicas, podemos compreender a tarefa que temos pela frente. Mas o processamento de matérias-primas é muito intensivo em energia. Portanto, logo se tornará óbvio que processar próximo à mina, onde há energia renovável disponível, será a solução mais verde e lucrativa. O Brasil tem tanto os materiais quanto a energia verde, e à medida que as catástrofes relacionadas às mudanças climáticas se intensificam, as regulamentações e os impostos sobre o carbono aumentarão, e a lógica do processamento local prevalecerá. Além disso, o número de navios necessários para transportar material processado — em vez de minerais brutos — diminuiria significativamente, reduzindo ainda mais a pegada de carbono. Os complexos mineral-industriais criam demanda por inovação em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) em vários serviços digitais e materiais especiais para usos específicos. O nível resultante de atividade empresarial — na extração, processamento e serviços de tecnologia — abriria oportunidades para um maior desenvolvimento local e regional, aproveitando a localização, que é uma oportunidade aberta pelo acesso à internet. E as possibilidades são muito mais amplas, pois incluem a descarbonização de toda a indústria e agricultura, além da saúde e outros setores. É um dos conjuntos de oportunidades mais amplos e desafiadores que o Sul Global, e particularmente o Brasil, já enfrentou.


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Como você avalia o papel do setor privado na mudança de paradigmas e como ele pode contribuir para a neoindustrialização no Brasil?

O setor privado é absolutamente essencial, especialmente um setor inovador e competitivo. Mas ele funciona muito melhor para o desenvolvimento quando há uma compreensão clara da oportunidade e um consenso público-privado sobre como aproveitá-la. Todos os saltos significativos no desenvolvimento — como os que ocorreram na Coreia do Sul, China, Cingapura e Taiwan — dependeram de um setor privado cada vez mais forte e competitivo, liderado por um governo muito forte e determinado. Mesmo os avanços feitos pelo Brasil com o "milagre" da substituição de importações foram baseados em forte apoio e altas barreiras protecionistas fornecidas pelo Estado. Sem um setor privado dinâmico, não há desenvolvimento, mas sem um propósito claro e políticas adequadas definidas pelo Estado, o setor privado não pode alcançar grandes sucessos, nem pode trazer progresso nacional. Ditaduras fizeram isso à força; democracias podem fazê-lo construindo consenso.

Como funcionam os ciclos tecnológicos? E qual é a importância da inovação tecnológica para um país como o Brasil?

A inovação, como argumentou o economista Joseph Schumpeter, é o motor do progresso no capitalismo, não importa o país. Portanto, o progresso no Brasil, como em qualquer lugar, depende da inovação em produtos, serviços, processos e também em políticas e instituições adequadas. A inovação no capitalismo ocorre através de revoluções sucessivas, que são ondas de tecnologias interconectadas e interdependentes que transformam toda a economia nacional e, gradualmente, também globalmente. A revolução atual é a quinta, baseada em microeletrônica barata e dados baratos, assim como a revolução da produção em massa anterior foi baseada em petróleo e materiais baratos. Essas revoluções começam no(s) país(es) central(is) e se espalham gradualmente pelo mundo. Ao longo do caminho, oportunidades de desenvolvimento se abrem e se fecham, dependendo das exigências de demanda dos países centrais e das capacidades e recursos dos países em desenvolvimento. A maior parte da América Latina maximizou e explorou com sucesso a janela de oportunidade para a substituição de importações durante a maturidade da revolução da produção em massa nas décadas de 1960 e 70. Nós não fizemos — e provavelmente não poderíamos — o mesmo com a próxima oportunidade, aproveitada pelos Tigres Asiáticos, com a globalização, Tecnologias da informação e comunicação (TIC) e exportações competitivas. Agora temos uma nova janela com a reglobalização. O Brasil está particularmente bem posicionado e não deve perdê-la.

As transformações tecnológicas também explicam o desenvolvimento de países como o Brasil?

Sim. O desenvolvimento de todos os países é explicado por transformações tecnológicas que se espalham dos países centrais para a periferia de maneiras diferentes. Tipicamente, é apenas quando há uma situação ganha-ganha entre os interesses empresariais no país central e aqueles na periferia que saltos "miraculosos" podem ocorrer. Estamos agora em um momento favorável para usar a revolução das TIC, em sua atual fase de propagação, para dar um salto no Brasil. Na verdade, eu diria que o Brasil tem o potencial para se tornar o dínamo do desenvolvimento na América Latina, assim como a China fez para a Ásia. Isso também pode ser uma situação ganha-ganha. O Brasil tem recursos abundantes e capacidades acumuladas. Precisa estabelecer metas e construir um consenso público-privado para aproveitar plenamente as oportunidades e tecnologias.

O Brasil está na vanguarda da indústria verde devido aos seus recursos naturais. Mas como o país pode inovar para liderar o processo de transformação ecológica?

Como você sugere, estar na vanguarda de uma indústria não é apenas ter os recursos, mas ser capaz de inovar e se tornar o mais avançado nas capacidades produtivas e tecnológicas necessárias. Por exemplo, as indústrias de mineração e agricultura estão sendo profundamente transformadas pelas TIC em todos os aspectos, desde a exploração até o processamento. Uma gama de serviços digitais está crescendo em torno das atividades de recursos naturais, aumentando sua eficiência, produtividade, segurança e sustentabilidade ambiental. A óbvia vantagem dos países com energias renováveis abundantes é melhor aproveitada ao avançar na cadeia de valor, não apenas para o processamento padrão (indo de matéria-prima a metais para uso final), mas também para desenvolver materiais especializados para usos específicos. Isso permite que os produtores finais aumentem sua própria produtividade e a qualidade de seus produtos com insumos "sob medida". O Brasil possui muitos engenheiros e cientistas altamente qualificados capazes de avançar nessa direção, e tem empresas de classe mundial em muitos setores que podem servir como âncoras para ecossistemas de inovação. Tudo isso se relaciona à transição verde e também ao potencial de um salto significativo na qualidade e no valor do perfil de exportação.

Na sua opinião, quais são as "janelas de oportunidade" que precisam ser abertas pelos países em desenvolvimento?

Bem, se entendermos que neste contexto uma "janela" é algo que se abre e se fecha em resposta aos interesses do mundo avançado, o que os países em desenvolvimento precisam fazer é usar a janela o mais rápido possível para aproveitá-la ao máximo. As tensões entre países tradicionalmente avançados e a China poderiam, infelizmente, levar a uma guerra ou a uma crise econômica, mas também poderiam levar ao "friendshoring" competitivo, buscando mão de obra de baixo custo para bens de consumo em alguns países e energia verde competitiva e capacidades para produtos industriais intermediários e finais em outros. Em última análise, o desenvolvimento do Sul Global é a única maneira realista de garantir uma demanda dinâmica por bens de capital, infraestrutura, bens de luxo, serviços tecnológicos e outros produtos de alta tecnologia do mundo mais avançado. Atualmente, o Ocidente e a China estão competindo com esses produtos de alta tecnologia nos mercados um do outro. Essa é a razão das barreiras protecionistas que finalmente estão tornando possível pensar sobre política industrial em toda parte. Eles lutarão por influência em um país após o outro, e o Sul pode aproveitar suas tensões negociando com ambos os lados para obter os melhores acordos. A reglobalização por meio do investimento em "friendshoring" é uma competição por influência e mercados potenciais. A América Latina não deve perder essa oportunidade como fez com os Tigres Asiáticos. Quanto ao Brasil em particular, a janela está começando a se abrir para um segundo "milagre", e desta vez poderia até alcançar as primeiras posições. É hora de o governo, as empresas e a sociedade no Brasil construírem um consenso ambicioso sobre o caminho a seguir e fazer isso acontecer.

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