A indústria automotiva teve uma vida relativamente estável até agora. Sim, desafios existiram, mas a lógica industrial e comercial vinha se mantendo constante, com fábricas produzindo, revendedores vendendo e mantendo os veículos, clientes comprando.
Vejamos alguns desses desafios: na virada do século XIX para o XX decidiu-se pelo motor a combustão em detrimento dos motores elétricos, que tinham baterias pesadas e sem autonomia. Os veículos deixaram de ser fabricados de forma artesanal e unitária, passando a ser produzidos de maneira repetitiva e consistente – a linha de produção foi apenas mais um passo desse processo.
No início do século XX também apareceram os formatos de distribuição que resistem até hoje: os concessionários. Houve evoluções constantes no design e projeto dos veículos: motores mais eficientes, assoalhos mais baixos, mais conforto, melhor acabamento, melhor desempenho e mais elegância.
Mais espaço para os passageiros e menos para os componentes mecânicos. E evoluíram as relações trabalhistas a partir do momento em que os funcionários de uma montadora também puderam ser proprietários – antes, este era um mercado para ricos.
As grandes guerras trouxeram uma massificação de produção e aperfeiçoamentos técnicos mais rápidos e frequentes. Novas demandas foram incorporadas ao veículo na forma de segurança, economia e redução de poluentes. Os carros se tornaram menores por fora, mais leves e mais especializados nas suas atribuições ou imagens.
Reviravolta de expectativas
Na segunda década do século XXI apareceram três megatendências que vieram sacudir o mercado e provocar uma reviravolta de expectativas: oferta de mobilidade como serviço, a eletrificação dos veículos e o conceito de veículo autônomo.
Levando-se em conta que o ciclo de produto de um automóvel tem de cinco a sete anos e que o período de desenvolvimento toma pelo menos três anos, os projetistas já deveriam estar desenvolvendo os veículos que conviverão com essas megatendências. Mas muitos fabricantes ainda não têm planos definidos. Os veículos produzidos hoje ainda estarão rodando em 2030 ou 2035, quando essas tendências já serão comportamentos. Vamos analisar com algum detalhe cada uma delas.
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A necessidade de um automóvel
Até pouco tempo, o acesso a um veículo era definido pela posse, leasing ou aluguel. Desde o primeiro momento existiu o conceito de taxis, mas não ao ponto de fazer uma pessoa prescindir da posse ou aluguel de um veículo.
Preocupações ecológicas, de espaço para guardá-lo, de desperdício de patrimônio e até de uma menor necessidade de uso do automóvel como espelho de personalidade ou sinal de independência conspiraram para levantar questionamentos entre os consumidores: preciso mesmo ter um automóvel? Por que não posso dividir um veículo com outras pessoas?
Os veículos produzidos para operar em compartilhamento terão de 10 a 15 horas de operação diária, ante as duas ou três horas para os veículos individuais. Preocupações estéticas e de posicionamento de marketing cederão espaço para benefícios de operação: espaço, conforto, facilidade de entrar e sair, capacidade de bagagem e segurança.
Consumo, segurança e emissões serão comandados pela legislação. A comoditização de plataformas será a norma e os facelifts terão ciclo mais curto, seguindo as evoluções de tecnologia, tal como os celulares.
Na mesma linha, as montadoras devem focar maior parte das suas operações na rotina do cliente e seu perfil de utilização, subcontratando operações de manufatura. A imagem de marca deverá mudar gradativamente do produto para a oferta do serviço de transporte.
As montadoras devem passar a considerar as provedoras de mobilidade, como Uber e Lyft, até locadoras, como concorrentes diretas, buscando associação. Essa megatendência deverá atingir 50% dos usuários na metade do século e o volume de vendas será reduzido a 60% ou 70% do que seria necessário com o modelo normal de posse, com foco no custo por quilômetro rodado.
Eletrificaçãode veículos
A segunda tendência é a eletrificação dos veículos em todas as suas formas. A energia elétrica permite acionar um veículo e todos os seus acessórios de forma muito mais eficiente. Enquanto um motor a combustão aproveita 27% da energia de seu combustível, um motor elétrico consegue 95% a 98%.
Enquanto a frenagem de um veículo elétrico pode ser feita pelo motor, recuperando a energia do movimento em carregamento das baterias, ninguém imaginaria recuperar gasolina ou etanol dessa forma. Portanto, fica resolvida a questão de eficiência a partir do reservatório de energia – neste caso baterias ou capacitores.
Enquanto no início do século XX os veículos elétricos foram preteridos pela sua baixa autonomia – o próprio Thomas Edison disse a Henry Ford que os veículos elétricos não tinham futuro – hoje, a densidade de energia de uma bateria permite que veículos elétricos práticos tenham 200 quilômetros ou mais de autonomia sem recarregamento.
Densidade de energia é a quantidade de energia armazenada em 1 kg de combustível ou bateria. Temos, hoje, que 1 kg de gasolina armazena 25 vezes mais energia do que 1 kg de bateria de lítio de última geração e 1 kg de etanol armazena 18 vezes mais. Porém, as baterias continuam evoluindo e poderão ter seu peso diminuído à metade em 10 anos.
Enquanto as baterias acumulam energia por uma transformação química, os capacitores simplesmente armazenam a energia elétrica sem transformação – são bem mais leves que as baterias e também têm uma corrida tecnológica a seu favor, caso do grafeno.
Equacionada essa parte passa-se à terceira preocupação, que é a geração da energia para carregar esses veículos. Para aqueles com motorização 100% elétrica, a infraestrutura de geração segue os modelos do país: hidroelétrica, eólica, fotovoltaica, marés, queima de combustíveis fósseis ou energia nuclear. Para os veículos com geração própria por motor a combustão, voltamos aos problemas de eficiência energética, embora veículos com ciclos mais eficientes que os 27% mencionados já estejam em gestação.
Aqui estão os veículos com tração híbrida, nos quais a potência mecânica do motor a combustão chega às rodas, e tração puramente elétrica, com um gerador de eletricidade a combustão e baterias menores. Também existe o etanol combustível, que diminui dramaticamente o impacto de CO2 – uma solução ótima para o Brasil.
A combinação entre compartilhamento de transporte e veículos eletrificados não é obrigatória, mas traria benefícios mútuos, justificando um preço maior, amortizado entre mais usuários.
Veículos autônomos
A terceira megatendência é a disponibilidade de veículos que não precisarão da interferência de um motorista para levar do ponto A ao ponto B. Sempre presente nas ficções científicas, a aplicação prática de veículos autônomos demorará mais do que as tendências anteriores.
No começo serão trajetos específicos – como as pistas expressas de ônibus em algumas cidades brasileiras – e serão ainda menos dependentes de marcas e modelos para os veículos compartilhados: quem verifica a marca de um ônibus antes de embarcar? Existirão também os autônomos particulares “de grife”, compartilhados por aqueles que tiverem os grandes recursos necessários para sua aquisição.
A exequibilidade dessa tendência depende de muitas coisas, a começar pela infraestrutura de vias urbanas e rodovias, capacidade de comunicação e legislação específica. Da mesma forma que as leis da robótica de Isaac Asimov, a legislação de gerenciamento dos autônomos precisa ser abrangente e cristalina.
Acidentes entre automóveis serão coisa do passado a partir do momento em que todos se comuniquem. Mas ainda existirão seres humanos, animais e a natureza para “atrapalhar” a vida deles.
Reinvenção da indústria
A combinação dessas três megatendências obriga a indústria automotiva a uma completa reinvenção, vendendo um benefício – a mobilidade – e não mais apenas um automóvel e uma imagem de marca. Passam a valer modelos de operação que privilegiem cobrança por quilômetro transportado, novos atributos de seleção dos produtos e serviços, transição da posse por indivíduos para a posse por empresas, pós-venda para veículos elétricos usados intensivamente, rotina de substituição menos dependente de valor de revenda e mais focada em custos operacionais e produção delegada a fornecedores.
E quais os modelos de monetização? Terá maior acesso aos recursos quem monitorar as rotinas dos clientes e se antecipar às suas necessidades de mobilidade, com veículos adequados à necessidade do momento: percurso, combustível, estacionamento, pedágio, tudo incluído. Quem ainda não começou a pensar nas soluções está muito atrasado.
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