Recuperar o fôlego da indústria brasileira é uma prioridade incontroversa. E também complexa, considerando as desanimadoras projeções de crescimento econômico do país nos próximos anos. A pauta requer discussões e ações pragmáticas, com destaque a arranjos temáticos de sustentabilidade e novas formas de produção e fortalecimento das cadeias, reestruturadas em tempos de guerra e pandemia. Não menos importante, instiga ao exigir um ambiente de extrema competência tecnológica fomentado por investimentos públicos e privados de alto padrão em ciência e inovação rumo à Indústria 4.0.
“A implementação de estratégias industriais deve ser o consenso deste século que se abre agora pós-crise, pós-pandemia, porque a indústria é o veículo para dar respostas aos desafios que a gente tem”, avalia Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI).
A indústria nacional nada contra a correnteza há décadas, sempre na tentativa de desviar das fortes ondas empurradas pelos epicentros de instabilidade econômica. Nos anos de 1980, amargou com os efeitos colaterais da crise da dívida de países desenvolvidos e de um processo interno de hiperinflação; na seguinte, viu a competitividade ser enfraquecida pela taxa de câmbio supervalorizada e, mais ao fim, pelos elevados níveis de taxas de juro. No início dos anos 2000, uma complexificação da estrutura tributária e o aumento da carga de impostos também intimidaram o desempenho industrial, atingido em cheio pela recessão doméstica de 2015 e 2016 e, mais recente, pela pandemia da Covid-19.
Os números recentes retratam o cenário turbulento. Em setembro, dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido) mostraram que a participação do Brasil na produção mundial encolheu de 1,31% para 1,28% e chegou, assim, ao menor patamar desde 1990. Ultrapassado pela Turquia, figura agora na 15ª posição no ranking, onde se manteve no top 10 até 2014. Com relação às exportações mundiais de bens da indústria de transformação, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta aumento de 0,77%, em 2020, para 0,81%, em 2021. Mas também projeta queda neste ranking, no qual o Brasil deverá passar 30º para 31º lugar, superado pela Indonésia.
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Internamente, a indústria perde protagonismo para o agronegócio. Nota recente divulgada pelos pesquisadores Claudio Considera e Juliana Trece, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), interpreta a queda da participação da indústria de transformação no PIB – de 36% em 1985 para 11% em 2021 – como um dos indícios de que ela “está à beira da extinção”.
“É um processo preocupante porque tradicionalmente a indústria é o principal vetor do desenvolvimento econômico dos países. Não é o único, mas é o principal”, afirma Cagnin.
Para o economista, a relevância do setor industrial se explica a partir de diferentes matrizes, sendo uma delas o efeito direto no desenvolvimento tecnológico nacional. A lógica dos especialistas não nega o esforço em ciência e tecnologia agregado ao campo, mas defende que a assimilação dos processos de inovação nas plantas manufatureiras tende a ser deslocado com mais facilidade para outros setores econômicos e, portanto, é mais permeável, ou seja, aproveitado com mais facilidade por outros segmentos.
Conforme a CNI, a indústria responde hoje por quase 70% dos investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento do país, ainda que, assim como o encolhimento industrial, estes também sejam investimentos em retração. Em julho deste ano, dados do Banco Mundial e do Ministério de Ciência e Tecnologia que indicam que o Brasil tem investido apenas 1,2% do PIB em pesquisa e desenvolvimento viraram debate no Senado – para a CNI, essa estimativa é menor ainda, de apenas 0,5%. Lá fora, países como a China e Alemanha chegam a aplicar 2%.
Apesar disso, investimentos públicos continuam a representar a maior fatia dos recursos disponíveis nos principais instrumentos brasileiros de suporte à inovação (em 2018, R$ 17,9 milhões dos cerca de R$ 34,3 milhões, mostra compilação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada publicada no ano passado), com a maior concentração das verbas em universidades. Há um consenso de que instituições públicas de ensino são o grande motor da ciência no país. Em 2019, eram responsáveis por 95% das pesquisas.
Portanto, é também nas universidades, avalia Cagnin, que se fortalecem políticas industriais. Não em um processo unidirecional – dos laboratórios para as fábricas –, mas a partir de uma parceria complexa que seja capaz de contemplar a verdade realidade da indústria.
“Se a gente quer manter a nossa performance econômica em patamar superior e se quer preservar as nossas competências tecnológicas, precisamos de uma indústria mais forte e aproximar os centros de pesquisa de ciência na universidade ao mundo da produção industrial no dia a dia”, observa o representante do IEDI. “O surgimento de políticas industriais nos países desenvolvidos, há mais de uma década, mostra isso, está muito voltado para essa aproximação do mundo da tecnologia e da inovação com o mundo industrial”.
Nesta remodelação de forças, a indústria também passa a ocupar mais espaço na agenda de discussões sobre segurança e soberania. A guerra da Rússia contra a Ucrânia e o conflito à parte provocado pela dependência de países europeus do gás natural enviado por Moscou, por exemplo, acelerou investimentos na ordem de bilhões na indústria de energia. Relatório da think tank Carbon Tracker, divulgado no último dia 20 de outubro, fala em aportes na casa dos $ 70 bilhões em hidrogênio verde apenas nos últimos meses.
É um matiz da discussão sobre desenvolvimento industrial que, conforme Cagnin, tende a ganhar ainda mais protagonismo.
“É um tema altamente contemporâneo e que envolve os países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, em que um dos objetivos da estratégia industrial é ampliar a segurança nacional, as competências da indústria de transformação são vistas de forma explícita nos documentos americanos como sinônimo de segurança nacional”, diz. “Na Europa é evidente também. Agora, com os conflitos armados na Ucrânia, há uma necessidade de a Europa desenvolver tecnologias e constituir cadeias industriais em torno de novas fontes energéticas, por exemplo. Desde a pandemia essa preocupação está muito clara, mas hoje onde é mais sensível do ponto de vista geopolítico, e é algo que envolve o fortalecimento das competências industriais”.
De acordo com o economista, o aprimoramento das políticas industriais nos países desenvolvidos demanda medidas para as quais o Brasil deveria olhar com mais atenção.
Parte de uma resposta ao crescimento acelerado da China, estas nações deixaram de se preocupar apenas em reconstituir sua malha manufatureira, impondo como essencial ao processo o desenvolvimento de novas tecnologias – engrenagem da Indústria 4.0. As temáticas sobre sustentabilidade e novas formas de produção compatíveis com a demanda ambiental e com a resiliência das cadeias produtivas também foram incorporadas, e ditam hoje as regras do serviço da indústria, que também passa a ser uma atividade cada vez mais próxima do setor de serviços.
Segundo Cagnin, apesar de a “indústria do futuro” ter menos capacidade de absorver trabalhadores por ser mais automatizada, a servitização do segmento manufatureiro, que são os modelos de negócios industriais cada vez mais relacionados ao setor de serviço, deverá ser uma garantia de continuidade da absorção da mão de obra e consequente aumento da produtividade. “Mas aí vai demandar cada vez mais mão de obra qualificada, o que gera outro desafio para o Brasil”, aponta.
Imagem de capa: Depositphotos
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